Cidade guarda marcas de confronto com sociedade alternativa de Osho
26.ago.2018
Flavio Sampaio, de Antelope (Oregon)
O censo norte-americano mais recente indica que a cidade de Antelope, no estado do Oregon, tem 46 habitantes, distribuídos em 38 casas.
Caminhando pelas oito ruas da cidade é possível ver uma escola, um café homônimo ao município e um mercadinho –todos abandonados. Abertos mesmo só a igreja, uma agência postal e um minimuseu criado por um casal de idosos.
"Aberto: Museu de História - Wild Wild Country", diz a placa improvisada, posicionada em frente a um casarão construído em 1895.
Desço do carro e peço licença para entrar. "Venha ver o que aconteceu nesta cidade nos anos 1980", convida o simpático senhor que não quer se identificar. "Sou ex-agente da CIA e do Mossad (o serviço secreto israelense)", diz.
Em meio a livros, recortes de jornais, fotos, placas de banheiro, camisetas e até mesmo uma cabeça de antílope, o museu (que é grátis) aproveita o sucesso do documentário "Wild Wild Country" (Netflix) para contar um pouco mais sobre a história do líder espiritual Bhagwan Shree Rajneesh (1931-1990), sua vinda para esse fim de mundo nos EUA e os milhares de seguidores que passaram a viver ali. O museu, criado em 2004, serviu de locação para algumas cenas da série.
Strip-tease
"Eles tentaram transgredir as leis americanas e se deram mal", sintetiza Barbara Beasley, casada com o tal agente secreto, apontando para um cavalete que convidava a população para uma apresentação de strip-tease. "A sociedade aqui é muito conservadora. Ficaram amedrontados com toda essa mudança", diz.
Em meados de 1981, o guru indiano também conhecido como Osho comprou 64 km² de terras desérticas. Por mais de dois séculos, Muddy Ranch (rancho lamacento) só tinha ovelhas, gado e cavalos. A vida ali era similar ao nosso agreste nordestino: garantir a refeição do dia e rezar por chuva.
Velho oeste
Osho decidiu sair de Puna, na Índia, onde tinha um ashram –espaço em que mora um guru e pessoas se reúnem para estudar– para desbravar o oeste americano. "Era para evitar o imposto de renda", diz Barbara. As leis americanas, assim como as brasileiras, não taxam rendimentos de instituições religiosas.
O guru e seu braço direito, Ma Anand Sheela, decidiram que a terra prometida para sua sociedade alternativa seria aquela ali. E lá foram eles, seguidos por milhares de sannyasins (seguidores da seita) e uma frota de 93 Rolls-Royces.
Em pouco tempo, a cidadezinha de Antelope começou a receber gente do mundo inteiro. Sete mil pessoas, para ser mais específico.
Vestidos sempre de tons de vermelho, vinho ou laranja, os sannyasins pregavam o amor livre, a devoção à natureza e a vida em comunidade. Muitos doavam tudo o que tinham de forma a financiar esse novo modelo.
Em apenas quatro anos, estima-se que US$ 120 milhões (cerca de R$ 450 milhões) foram investidos na infraestrutura da fazenda que tornou-se referência de sustentabilidade e eficiência. Um lago e um aeroporto foram construídos.
Depois de uma esmagadora vitória nas urnas, a cidade mudou de nome e passou a se chamar Rajneeshpuram.
Esse foi apenas o começo de uma queda de braço com a sociedade americana. Após serem vítimas de um ataque à bomba, os sannyasins criaram um exército próprio, chamado "Força da Paz".
O armamento incluía submetralhadoras Uzis e jipes com metralhadoras calibre.30. A partir desse momento não haveria mais nem paz, nem amor entre os cidadãos do condado de Wasco, onde fica a cidade, e os seguidores de Bhagwan.
O auge aconteceu nas eleições de 1983, quando os sannyasins borrifaram salmonela nos bufês de salada dos restaurantes da região.
Bioataque
Enquanto os eleitores oponentes estivessem ocupados nos vasos sanitários, seguidores de Osho conquistariam ainda mais poder político: 751 pessoas foram envenenadas e 45 foram parar no hospital. O plano não deu certo. Até hoje esse é o maior bioataque terrorista cometido em solo americano.
"Minha mãe foi uma das intoxicadas", diz Leta Ann Reckman, voluntária no museu de história de Sherman, condado vizinho a Wasco. "Eu me lembro de quando meu marido estava dirigindo uma colheitadeira e precisava cruzar a estrada. Eu tinha de jogar pneus no asfalto para que as garras da máquina não furassem o chão."
"Quando vi alguns carros se aproximando, mandei meu marido parar. Eram seis Rolls-Royces, um deles com o Rajneesh." Pergunto: se ela pudesse voltar no tempo, o que faria? "Passaria por cima, claro."
Colônia de férias
Desde 1999, Muddy Ranch é frequentado por milhares de seguidores de outro líder espiritual vindo do Oriente: Jesus Cristo. Comprado por um filantropo por US$ 3,6 milhões (R$ 14,2 milhões), a propriedade foi doada para a Young Life, organização cristã fundada em 1941.
O rancho comprado em 1981 para a construção de uma sociedade alternativa foi arrematado em leilão por um bilionário de Montana e doado em 1999 para uma entidade cristã. Atualmente serve como colônia de férias para jovens.
Como jornalista, minha visita à fazenda foi negada. Como pai e morador do Oregon, conquistei um tour completo no local que funciona como colônia de férias.
A fazenda é a joia da coroa da Young Life, entidade que movimentou US$ 387 milhões (R$ 1,5 bilhão) em 2017, presente em mais de cem países, inclusive no Brasil.
No verão, mais de mil jovens desfrutam "a melhor semana de suas vidas", como promete a organização.
No prédio principal, onde Osho proferia seus ensinamentos, há quadras poliesportivas, sinuca, pista de skate e paredes de escalada.
Divididos em grupos etários, os jovens passam o dia praticando esportes, brincando no parque aquático (criado pelo mesmo profissional que projetou brinquedos para a Disney), na tirolesa ou até mesmo na pista de kart profissional.
Há restaurantes, lanchonetes, lojas e alojamentos que dariam inveja a muito resort de luxo. O pacote de sete dias, com tudo incluso, custa US$ 551 (cerca de R$ 2.170) –uma barganha para os padrões locais. Em troca, é esperado que os jovens aceitem Jesus no coração.
Das construções originais, pouca coisa ficou de pé. Agora reformadas, as casas dos sannyasins foram ocupadas pelos 150 funcionários da fazenda. Jesus Grove, onde morava Sheela, é um prédio administrativo.
Já a casa do Osho foi a única a ser destruída por um incêndio de grandes proporções. "Depois de queimá-la inteira, o vento mudou de lado e impediu que o fogo queimasse as outras construções", diz o voluntário que conduziu meu tour. "Deus tem senso de humor."
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Cronologia
Julho de 1981
Ma Anand Sheela visita o Muddy Ranch, no interior do Oregon, e convence Bhagwan Rajneesh de que lá seria o lugar ideal para a comunidade. Pagam US$ 5,75 milhões (R$ 22,7 milhões) pela propriedade
Abril de 1982
Com vitória nas urnas, os sannyasins conquistam a prefeitura de Antelope e mudam o nome da cidade para Rajneeshpuram
Setembro de 1984
751 pessoas são envenenadas pelos sannyasins com salmonela como manobra para vencer as eleições do condado de Wasco, o que não aconteceu
Setembro de 1985
Para escapar da prisão, Sheela e um pequeno grupo de apoiadores fogem para a Alemanha. No mês seguinte, Rajneesh tenta fazer o mesmo, a bordo de um avião privado, mas é detido e depois expulso dos EUA por fraude imigratória
1986
Sheela é condenada a 24 anos de prisão nos EUA por tentativa de assassinato. Cumpre dois anos e meio e sai por bom comportamento
1990
Rajneesh morre aos 58, em Puna, na Índia. No mesmo ano, Sheela passa a comandar dois residenciais de idosos próximo a Zurique, na Suíça, onde ainda mora
1991
Um bilionário americano compra o local por US$ 3,6 milhões (R$ 14,2 milhões)
1996
Um incêndio queima grande parte da fazenda. Ao se aproximar das construções, apenas a casa onde viveu Rajneesh é destruída. O vento muda de lado e nada mais é arruinado
1997
A propriedade é doada para a Young Life, organização cristã focada em adolescentes
1999
Após uma extensa reforma que incluiu novos alojamentos, quadras poliesportivas, paredes de escalada, parque aquático e pista de kart, a fazenda inicia suas atividades como colônia de férias religiosa
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Leia a matéria original aqui
Barbara Beasley (à esq,) e seu marido criaram o museu em 2004, bem antes do documentário produzido pela Netflix tornar-se um hit mundial. Diversos pertences de Bhagwan (Osho) e Sheela podem ser visto gratuitamente no museu